Censurar músicas é brecha para a direita calar todo o mundo

A liberdade de expressão só é um direito de verdade se for um direito absoluto. Se houver limites para o direito de se expressar, está aberto o caminho para a censura generalizada. Se o direito de falar for limitado, quem vai estabelecer esse limites? Quem vai decidir o que pode ou não ser dito? Com base em que considerações? E com que interesses?

Na Constituição de 1988, que rege nosso moribundo regime político, a liberdade de expressão teoricamente estava garantida. No inciso IX do artigo V, diz a carta: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Bonitas palavras, “independentemente de censura ou licença”. De acordo com isso, o Estado jamais poderia censurar um discurso, reportagem ou obra artística.

No entanto, não é isso que acontece. Atualmente, uma brecha legal é usada pela direita para proibir expressões artísticas, usando os artigos 286 e 287 do Código Penal. O primeiro se refere à “incitação ao crime”, e o segundo à “apologia ao crime”. O truque jurídico consiste em argumentar que a representação de ações criminosas em uma obra artística seria apologia e incitação a essas ações.

Com essa brecha, a música “Isso aqui é uma guerra”, do grupo de rap Facção Central, lançada em 1999, foi censurada por um juiz. Os integrantes do grupo foram condenados, o clipe da música retirado do ar e a venda dos discos proibida. Os integrantes do Facçao Central foram acusados de estar incentivando a prática de todos os crimes representados no clipe e na letra da música, como assalto, assassinato e latrocínio. Para completar, a direita, com seu cinismo de costume, acusou-os também de racismo.

Mais recentemente, os mesmos artigos foram usados para condenar os membros da banda mineira UDR, sentenciados em 2016, também por causa de letras de músicas. Eles também foram acusados de ofender símbolos religiosos, acusação que cairia bem em países como a Arábia Saudita.

Nos dois casos, leis penais foram usadas como instrumento de censura, contra a liberdade de expressão. De qual crime as letras faziam apologia? Quem foi incitado a praticar crimes por essas letras? Em que oportunidade? Anos depois da composição dessas músicas, existe um único crime concreto que possa ser inequivocamente relacionado a essas letras? Evidentemente não.

Essas obras foram censuradas por motivos morais, porque ofenderam a moral de alguém. A acusação de incitação ao crime foi apenas um pretexto. E a direita pretende continuar usando esses artigos para censurar. Especialmente em um momento em que os golpistas estão em uma ofensiva contra a cultura e a liberdade de expressão. É fundamental para a direita calar as críticas diante da política de destruição do país que ela pretende implementar.

Como outros direitos democráticos, a liberdade de expressão tornou-se incompatível com o regime burguês há muito tempo. Depois do golpe, houve retrocesso na luta por cada um desses direitos. Contra a liberdade de expressão, a direita já preparou uma série de iniciativas, como um pretenso combate às “fake news”, na verdade uma defesa do monopólios das comunicações, e a ameaça à neutralidade da rede. O fato de as pessoas poderem falar o que quiserem tornou-se uma ameaça constante ao regime.

Por isso, invocar justamente o argumento da “apologia ao crime” contra a música de MC Diguinho “Só surubinha de leve” reforça justamente um argumento da direita para exercer a censura em geral. Por enquanto, ao que parece, ninguém acusou o funkeiro criminalmente nesses termos, mas a campanha contra a música por uma suposta “apologia” reforça a campanha mais geral da direita para poder censurar. Mesmo que a música falasse inequivocamente de uma situação em que não há consentimento, o que está longe de ser o caso.

Finalmente, sob esse argumento, de que representar um ato criminoso em uma obra de arte é incitação ao crime, a direita poderia proibir também obras de arte mais consagradas. Não só músicas populares entre determinados públicos, mas também obras clássicas da literatura, como Crime e castigo ou Angústia, entre inúmeros exemplos. Ou talvez o último filme que você assistiu, ou capítulo de seriado.